Histórico

A Paróquia Santo André, foi desmembrada da Paróquia Nossa Senhora Imaculada Conceição, fundada em 20 de junho de 1971, tem como padroeiro o Apóstolo André, santo que a Igreja celebra sua memória no dia 30 de novembro, data de seu martírio. No dia 30 de novembro de 2014, Dom Redovino Rizzardo elevou à qualidade de paróquia, nomeando o primeiro pároco, o Padre Otair Nicoletti. A equipe de Coordenação do Conselho Comunitário de Pastoral - CCP está formada pelas seguintes pessoas: Coordenação: Laudelino Vieira, Paulo Crippa; Assuntos Econômicos: José Zanetti, Valter Claudino; Secretaria: Marcus Henrique e Naiara Andrade.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

BÍBLIA: A NOVA PROFECIA: REFAZER O TECIDO DAS RELAÇÕES HUMANAS

Reconstruir a comunidade, imagem do rosto de Deus

Frei Carlos Mesters, O.Carm, e Francisco Orofino.


I
NO TEMPO EM QUE JÁ NÃO HAVIA PROFETAS

A conjuntura Eclesial num mundo que se globaliza
Antigamente, quando os bispos da América Latina reuniam em assembléia, toda a imprensa acompanhava o evento. Na conferência de Medellín foi grande a animação. O contexto do mundo, 1968, era marcado pelo vento renovador do Concílio Vaticano II, pela revolução mundial da juventude, pelo ambiente da guerra fria, pelas ditaduras na América Latina. As palavras dos bispos tinham peso, alcançavam os meios de comunicação e despertaram um movimento popular muito importante para a história dos nossos povos. A conferência de Medellín, releitura latino-americana do Vaticano II, confirmou e irradiou a teologia da libertação e tornou-se fonte animadora das Comunidades Eclesiais de Base. Puebla foi a confirmação e o aprofundamento da caminhada. Foi uma época bonita e promissora. Profética!
Hoje, a situação é outra. Quando os bispos reúnem, a imprensa quase não fala. Já não somos notícia. Muitos dos que lutaram nos anos 60 e 70, hoje estão cansados e frustrados. Não é que perderam a fé, mas já não sabem como enfrentar o mundo novo com a fé antiga. Cresce a secularização. É difícil imaginar que uma comunidade de base do interior do país possa enfrentar o FMI para cobrar dele a observância do Evangelho. O império tem outros deuses e outras leis! Alguns acham que a teologia da libertação e as comunidades eclesiais de base já pertencem ao passado. Agora seria a hora dos movimentos internacionais.
A linha divisória foi o avanço do império neoliberal e a queda do muro de Berlim. A alternativa que parecia dar certo desintegrou-se e por ora não apareceu outra. Em muitos países, as eleições parecem um pêndulo: quando a direita não agrada, passa-se para a esquerda, e onde a esquerda não agradou passou-se para a direita. Não há um rumo claro que aponta para o futuro. Perigos novos aparecem no horizonte: ameaça ecológica e atômica, doenças novas, injusta distribuição da riqueza, violência galopante, ameaça de guerra religiosa em nível mundial, etc. Desesperadoramente, a humanidade busca uma saída, suspirando por alguma profecia que lhe indique o caminho. Enquanto isso, a igreja está cada vez mais voltada sobre si mesma e seus problemas internos, mais clerical, menos envolvida nas lutas populares. Menos profética!
Neste tempo sem profetas, será que o espírito profético está suscitando novas formas de profecia? Isaías respondia aos que ainda não as enxergavam: “Estou fazendo coisas novas! Não estão vendo?” (Is 43,19) Jesus criticou os fariseus por não prestarem atenção aos sinais dos tempos (Mt 16,1-3).

A conjuntura “eclesial” na época do cativeiro da Babilônia
            Desde o início da monarquia (1000 aC), até o exílio da Babilônia (587-538), os profetas faziam parte da história de Israel. Eles eram a consciência falante do povo de Deus. Depois do exílio, o povo dizia: "Não existem mais profetas" (Sl 74,9; cf Dn 3,38). Chegaram a dividir a história em dois períodos: o período em que havia profetas, e o período "em que já não havia mais profetas" (1Mc 9,27). Falava-se dos antigos profetas (Zac 1,4; 7,7). Coisa do passado! Tinham até feito uma lista que já parecia completa: doze profetas (Eclo 49,10), e passaram a usar a palavra profeta para os tocadores de instrumentos musicais nas celebrações litúrgicas (1Crôn 25,1.3). Durante os 400 anos do período dos reis, eles tiveram seus profetas. Durante mais de 500 anos, desde o exílio até João Batista, ficaram quase sem profetas e viviam à espera de algum profeta que lhes explicasse as coisas (cf. 1Mc 4,46 14,41). Esta era a impressão do povo na época.
            A linha divisória foi o avanço do império da Babilônia e a destruição de Jerusalém. Tudo foi destruído! Tudo que, até àquele momento, tinha sido a garantia visível da presença de Deus no meio do povo! OTemplo, morada perpétua de Deus (1Rs 9,3), foi incendiado (2Rs 25,9). A Monarquia, fundada para durar sempre (2Sam 7,16), já não existia (2Rs 25,7). A Terra, cuja posse tinha sido garantida para sempre (Gen 13,15), passou a ser a propriedade dos inimigos, (2Rs 25,12; Jer 39,10; 52,16).
O império destruiu o sistema socio-político das pequenas monarquias do Médio Oriente. A partir de 587, todos ficaram sob o domínio do poder estrangeiro. Já não eram Estado nem Nação, mas apenas comunidades étnicas, dispersas num império multicultural e multirracial, sem independência política, sem exército, sem rei. Nesta situação, era impossível imaginar que alguém das aldeias da Palestina pudesse atuar como profeta ou profetisa no estilo antigo de Amós ou Miquéias. Um camponês da Palestina já não teria nenhuma possibilidade de cobrar a observância da Lei de Deus, seja do imperador da Babilônia ou da Pérsia, seja dos governantes helenistas. O império tinha outros deuses e outras leis!
Ora, foi precisamente neste período sem profetas, que a profecia encontrou novas formas de expressão. A Nova Profecia! É o que vamos olhar mais de perto neste artigo, para que nos ajude a perceber melhor a profecia que já atua no meio de nós. A reflexão bíblica que segue neste artigo fala por si. Não precisa de comentário. É espelho do que hoje acontece.

II
A NOVA PROFECIA DURANTE O CATIVEIRO

O trauma da ausência de Deus e a busca de novos caminhos
O cativeiro destruiu o quadro das referências religiosas que tinham orientado o povo de Deus até àquele momento. Secularizou a vida! Perdido, sem rumo, o povo procurava uma saída que lhe desse segurança e esperança. O que mais pesava era o sentimento do abandono, misturado com um complexo de culpa (Is 40,27; 49,14; Lam 1,8.14). Eles pensavam que, por causa da sua infidelidade, Deus tivesse mudado de atitude  e os tivesse rejeitado para sempre (Sl 77,8-11; 79,5). Ele já não estaria escutando o grito do povo (Lam 3,8; Sl 22,2-3). O texto da terceira Lamentação retrata bem esse sentimento de desespero: 
"Eu sou o homem que conheceu a dor de perto, sob o chicote da sua ira. Ele (Deus) me conduziu e me fez andar nas trevas e não na luz. Ele volve e revolve contra mim a sua mão, o dia todo. Consumiu minha carne e minha pele, e quebrou os meus  ossos. Ao meu redor, armou um cerco de veneno e amargura, me fez morar nas trevas como os defuntos, enterrados há muito tempo. Cercou-me qual muro sem saída, e acorrentado, me prendeu. Clamar ou gritar de nada vale, ele está surdo à minha súplica.  ....  Fugiu a paz do meu espírito, a felicidade acabou. Eu digo: "Acabaram-se minhas forças e minha esperança em Javé" (Lam 3,1-8.17-18).
A imagem de Deus que transparece nas entrelinhas deste lamento é a de um carrasco que só quer vingar e machucar. Trágica experiência! Fonte de desespero! Como redescobrir a presença amorosa de Deus na vida? Antigamente, profetas como Samuel e Moisés falavam com Deus e Ele respondia (Sl 99,6). Onde está Deus agora? (Sl 42,4.11; 115,2; 79,10; Mi 7,10). Como sair desta situação?  Eram estas as perguntas que agitavam as consciências e as conversas de muita gente.
Apareceram várias respostas. Inicialmente, não eram respostas distintas, separadas umas das outras, mas sim opiniões e tendências diferentes, misturadas entre si, tanto na vida das pessoas, como dos grupos, sem muita clareza, num ambiente de busca e desencontro. Exatamente como hoje! As diversas respostas podem ser classificadas em quatro direções:
1. A maioria silenciosa: adotaram os deuses do império e se acomodaram
A maioria dos exilados acomodou-se e começou a freqüentar a religião da Babilônia com suas procissões grandiosas e imagens majestosas. Adotaram os ídolos e o jeito de viver dos grandes. Este grupo parece ter sido o mais numeroso. A maioria silenciosa! Pois, o que mais transparece nos escritos daquela época é a denúncia do perigo dos ídolos da Babilônia (Is 44,9-20; Ba 6,1-72; Sl 115,4-8). Hoje também, a maioria silenciosa busca o caminho mais cômodo do consumismo, a nova religião do império neoliberal com seus templos grandiosos.
2. Zorobabel e Josué: queriam reeditar o passado, mas foram impedidos
Para outros, o fato de estar fora da própria terra era o mesmo que estar longe de Deus! Eles consideravam a época dos reis como o modelo a ser imitado. Deste grupo eram Zorobabel, Josué, Ageu e outros. Eles voltaram para Palestina, quando Ciro permitiu o retorno (Esd 1,2-4). Queriam a todo custo reconstruir o templo, restaurar a monarquia e recuperar a independência política. Queriam reconstruir o passado, mas não tiveram futuro. O império o impediu. Hoje, alguns sonham com o retorno da cristandade.
3. Discípulos de Isaías: encontraram uma nova saída, mas não foram reconhecidos
Um outro grupo achava que a solução não era voltar ao passado nem acomodar-se no presente, nem adaptar-se às exigências do império, mas sim aprender a ler com outros olhos a nova situação em que se encontravam. Eles se perguntavam: “O que será que Deus nos quer ensinar por meio deste fato tão trágico do cativeiro?” Eles procuravam voltar às origens do povo. Reliam as histórias do passado para encontrar nelasuma luz que os ajudasse a redescobrir a presença de Deus naquela terrível ausência. Deste grupo eram Jeremias e os discípulos e discípulas de Isaías, cuja experiência, registrada em Isaías 40 a 66, foi um marco importante na história do Antigo Testamento. Era um movimento de base, que não chegou a ter reconhecimento oficial.
4. Neemias e Esdras: adaptaram o modelo antigo à nova situação e conseguiram impor-se
Durante e, sobretudo, depois do cativeiro surgiu um outro grupo liderado por Neemias, Esdras e uma parte da elite pensante. Eles achavam que, em nome de Deus, deviam aceitar o jugo do rei estrangeiro, rezar por ele e colaborar com ele (Jer 27,6-8.12.17; 42,10-11). Ao mesmo tempo, queriam manter a consciência de serem o povo eleito de Deus, distinto e separado dos outros povos. Por isso, insistiam na observância da lei de Deus (Esd 7,26; Ne 8,1-6; 10,29-30) e na pureza da raça que proibia o contato com os outros povos (Esd 9,1-2). E para que todos os judeus, dispersos no império persa, se unissem neste esforço de serem a raça escolhida de Deus, criaram um movimento internacional, transformando Jerusalém em símbolo de unidade para todos (Ne 2,5). O projeto de Neemias e Esdras levou vantagem sobre os outros. Hoje, a relação igreja-estado muitas vezes tem características semelhantes: de um lado, abertura frente o poder civil para conseguir favores para a Igreja e, de outro lado, insistência no direito de a Igreja poder viver sua fé publicamente com total liberdade.

As primeiras luzes: uma nova maneira de reler o passado
Ainda durante o exílio, os discípulos de Isaías começaram a reler o passado. Um exemplo concreto desta releitura é a maneira como apresentavam a história do profeta Elias. Eles olhavam não só o lado exterior e grandioso da denúncia profética, mas também o lado interior e escondido das crises e dúvidas. O estado de depressão em que Elias ficou diante da ameaça da monarquia era um espelho da situação do povo no cativeiro:
“Elias sentou-se debaixo de uma árvore e desejou a morte, dizendo: "Chega, Javé! Tira a minha vida, porque não sou melhor que meus pais". Deitou-se debaixo da árvore e dormiu. Então um anjo o tocou e lhe disse: "Levante-se e coma". Elias abriu os olhos e viu bem perto da cabeça um pão assado sobre pedras quentes, e uma jarra de água. Comeu, bebeu e deitou-se outra vez”. (1Rs 19,2-6)
Elias só queria comer, beber e dormir. Como muitos dos exilados, ele tinha perdido o sentido da vida. Mas o anjo voltou uma segunda vez e, finalmente, Elias desperta, reencontra a força e caminha, quarenta dias e quarenta noites, até chegar no Monte Horeb (1Rs 19,4-8), onde, séculos antes, naquele mesmo lugar, havia nascido o povo de Deus (Ex 19,1-8). Elias voltou às raízes! Era esta a caminhada que o povo do cativeiro devia fazer: voltar às raízes!
No Monte Horeb, Deus o interpela: “Elias, que fazes aqui?” Ele responde: “Eu me consumo de zelo pela causa do Senhor, pois os filhos de Israel abandonaram a aliança, derrubaram os altares e mataram os profetas. Fiquei só eu e até a mim eles querem matar!” (1Rs 19,10.14). Existe uma contradição entre o discurso e a prática. Conforme o discurso Elias é o único que sobrou; mas na prática havia sete mil que não tinham dobrado o joelho diante de Baal (1Rs 19,18). Conforme o discurso Elias está cheio de zelo; mas a prática mostra um homem medroso que foge (1Rs 19,3). Conforme o discurso ele sabe analisar o fracasso da nação; mas na prática não sabe analisar o seu próprio fracasso, pois nem percebe a presença do anjo.
O olhar de Elias estava perturbado por algum defeito que o impedia de avaliar a situação com objetividade. Não é que ele tenha perdido a fé, mas já não sabe como enfrentar a realidade nova com a fé antiga. Havia algo de comum entre Elias e seus perseguidores: ambos matavam em nome de Deus! Foi em nome de deus (Javé) que Elias matou os 450 profetas de Baal (1Rs 18,40). Foi em nome de deus (Baal) que Jezabel matou os profetas de Javé. (Bush reagiu com a mesma violência de Bin Laden, ambos agindo em nome de Deus: “Guerra santa!” – “Cruzada!”). Havia algo de errado na imagem de Deus que animava Elias na sua luta contra Baal. Por isso, seu olhar estava perturbado, incapaz de avaliar a situação com objetividade.
Qual a imagem de Deus que anima a Igreja hoje? Qual a imagem de Deus que deveria estar nos olhos e no coração do povo do cativeiro e que deveria estar nos nossos olhos hoje? Esta era e continua sendo a pergunta fundamental. A resposta é dada na história da Brisa Leve.
Brisa leve! Tapa na cara! “Por favor, acorda!”
Elias recebe a ordem: “Saia e fique no alto da montanha, diante de Javé, pois Javé vai passar!” (1Rs 19,11). Elias sai da gruta e se prepara para o encontro com Deus. Momento solene! Verdadeiro arquétipo! Primeiro, vem um furacão! Depois, um terremoto! Depois, um fogo! No passado, naquela mesma Montanha Horeb, Deus manifestara sua presença no furacão, no terremoto e no fogo (Ex 19,16). Estes sinais tradicionais da presença de Deus eram os critérios que orientavam Elias na sua busca. Mas acontece o inesperado: Deus já não estava no furacão, nem no terremoto, nem mesmo no fogo que, pouco antes, lá no Monte Carmelo, havia sido o grande sinal da presença divina a queimar o sacrifício diante de todo o povo (1Rs 18,38). Parece até um refrão que chama a atenção: “Javé não estava no furacão!” – “Javé não estava no terremoto!” – “Javé não estava no fogo!” (1Rs 19,11-12) Os sinais tradicionais da presença de Deus eram lâmpadas apagadas. Bonitas para ver, mas sem luz! Deixaram Elias no escuro! Como Zorobabel, Josué, Esdras, Neemias e a elite pensante, Elias vivia no passado! Deus já não era como ele, Elias, e tantos outros no cativeiro o imaginavam e desejavam. Deus tinha mudado! (Sl 77,11)
É a desintegração do mundo de Elias: espelho da desintegração da vida do povo no cativeiro depois que Nabucodonosor mandara destruir os sinais tradicionais da presença de Deus: templo, rei, posse da terra. Caiu tudo! A imagem que Elias (o povo do cativeiro) tinha de Deus quebrou em mil pedaços. É o silêncio de Deus! Na língua hebraica, este silêncio, é expresso com as seguintes palavras: “voz de calmaria suave”, (qôl demamáh daqqáh). As traduções costumam dizer: “Murmúrio de uma brisa suave” Mas a palavra hebraica, demamáh, usada para indicar a calmaria, vem da raiz DMH, que significa pararficar imóvelemudecer. O “murmúrio de uma brisa suave”, que veio depois do furacão, terremoto e fogo, indica uma experiência, que, como um golpe suave e inesperado, faz a pessoa ficar calada, cria nela um vazio e, assim, a dispõe para escutar. É puxão de orelha, tapa na cara! Mesmo dado com suavidade, não deixa de ser tapa! Tapa que desperta, quebra a ilusão irreal e faz a pessoa voltar à realidade. Na realidade, a brisa suave, o tapa na cara, era o exílio que tinha destruído tudo e obrigava o povo a uma conversão radical.
Elias cobre o rosto com o manto (1Rs 19,13). Sinal de que tinha experimentado a presença de Deus naquilo que parecia ser a sua ausência! Despertou! Aprendeu a lição! A situação de derrota, de morte e de secularização em que se encontrava o povo no cativeiro é percebida como sendo o momento e o lugar onde Deus o atinge. A escuridão iluminou-se por dentro e a noite ficou mais clara que o dia (Sl 139,12). Deus se fez presente na ausência para além de todas as representações e imagens! Escuridão luminosa!
A experiência de Deus na Brisa Leve dá olhos novos e produz uma mudança radical. Elias descobre que não é ele, Elias, que defende a Deus, mas é Deus quem defende a Elias. É a sua conversão e libertação!Reencontrando-se com Deus, encontrou-se consigo mesmo e com a sua missão. Imediatamente, ele parte para cumprir as ordens de Deus. Uma delas é ungir Eliseu como profeta em seu lugar (1Rs 19,16). Renasce a profecia! A Nova Profecia! A luta pela justiça renasce da experiência da gratuidade. Qual o tapa na cara de que hoje estamos precisando ou que já estamos recebendo e ainda não percebemos?

III
UMA NOVA IMAGEM DE DEUS
UM NOVO JEITO DE TRABALHAR COM O POVO
Esta maneira nova e original de reler o passado produziu fruto na vida dos discípulos de Isaías que viviam e sofriam no cativeiro. Para eles, Elias não era alguém do passado, mas era o próprio povo. De certo modo, não foi Elias, mas sim eles mesmos, discípulos e discípulas de Isaías, que cobriram o rosto, sinal de que estavam redescobrindo a presença de Deus naquela terrível ausência do cativeiro. Disso brotou uma nova imagem de Deus e nasceu um novo jeito de trabalhar com o povo.

Uma nova imagem de Deus, raiz da nova profecia
Como tantos exilados e migrantes de hoje, o único espaço de uma certa autonomia e liberdade que ainda sobrava para eles lá no cativeiro da Babilônia era o espaço familiar: o pai, a mãe, o marido, a esposa, um irmão ou irmã, o mundo pequeno da família, a “casa”. Todo o resto que antes fazia parte da vida já não existia: a organização mais ampla da tribo, a posse da terra, o templo, as peregrinações, o culto, o sacrifício, o sacerdócio, a monarquia. Nada disse tinha sobrado. Ora, foi exatamente neste espaço reduzido e enfraquecido da família, da comunidade, da “casa”, que eles reencontraram a presença de Deus. A nova imagem de Deus que eles criaram reflete bem este ambiente familiar da casa. Deus é apresentada por eles como Pai (Is 63,16; 64,7), como Mãe (Is 46,3; 49,15-16; 66,12-13), como Marido (Is 54,4-5; 62,5), como parente próximo (goêl ou irmão mais velho) (Is 41,14; 43,1). Javé, o Deus que antes estava ligado ao Templo, ao culto oficial, ao sacerdócio, ao clero, à Monarquia, agora está perto deles, “em casa”; casa pequena, quebrada e, humanamente falando, sem futuro, mas Casa, e não Templo. Não usaram as imagens religiosas tradicionais, mas sim as imagens tiradas da vida familiar e comunitária de cada dia. Eles humanizaram a imagem de Deus e sacralizaram a vida, a família, a pequena comunidade, como o espaço do reencontro com Deus. “Realmente, tu és um Deus que se esconde, Deus de Israel, Deus salvador!” (Is 45,15) Ele se esconde e se abriga onde antes ninguém o procurava: em casa, no relacionamento diário familiar e comunitário, no meio do povo exilado e excluído (Is 57,15)! Dá para entender que a elite, a hierarquia, os chefes e os sacerdotes não gostaram muito desta maneira de interpretar e comunicar a presença de Deus. No entanto, aqui está a raiz da Nova Profecia que vai ecoar pelos quatro séculos até à chegada do Novo Testamento!

Um novo jeito de trabalhar com o povo, uma nova pastoral
Esta nova experiência de Deus fez com que os discípulos e discípulas de Isaías redescobrissem sua identidade e missão, não mais como povo privilegiado, separado dos outros, mas sim como povo eleito por Deus para servir a humanidade (Is 42,1-6; 49,1-6; 50,4-9). E lá mesmo no cativeiro, eles começaram a colocar em prática esta sua missão de serviço. Eis algumas características desta nova pastoral:
Acolher o povo com muita ternura
Para o povo que vive machucado e triste, na solidão do cativeiro, não bastam a imposição de preceitos e as ameaças da lei, não basta nem mesmo a denúncia profética, para que ele levante a cabeça e comece a enxergar a situação com esperança renovada. É necessário, antes de tudo, cuidar das feridas do coração, acolhendo-o com muita ternura e bondade. Os discípulos e as discípulas de Isaías têm uma conversa atenciosa, cheia de ternura e consolo, de acolhimento e encorajamento. As primeiras palavras: “Consolai! Consolai o meu povo!” (Is 40,1) ressoam pelas páginas do livro inteiro, do começo ao fim (Is 49,13; 51,12). “Eles não gritam nem apagam a vela que ainda solta um pouco de fumaça” (Is 42,2-3). Ou seja, machucados, não machucam. Oprimidos pela situação em que se encontram, não oprimem, mas tratam e acolhem o povo com muito respeito e carinho. Usam uma linguagem simples, concreta e direta, numa atitude de ternura nunca vista antes, que funcionava como bálsamo, e dispunha as pessoas para olhar a realidade com mais objetividade. Eis alguns exemplos: Is 54,7-8; 41,9-10; 41,13-14; 40,1-2; 43,1-5; 46,3-4; 49,14-16; etc.
Ensinar dialogando em pé de igualdade
Nas entrelinhas dos capítulos 40 a 66, transparece uma atitude de escuta e de diálogo. Os discípulos e discípulas de Isaías ensinam dialogando, em pé de igualdade com o povo. Eles conversam, fazem perguntas, questionam, levam o povo a refletir sobre os fatos (cf Is 40,12-14.21.25-27; etc.). Este jeito de ensinar é próprio de quem se considera discípulo e não dono da verdade (Is 50,4-5). Um discípulo não absolutiza seu próprio pensamento, nem impõe suas idéias autoritariamente, mas sabe ensinar escutando e aprendendo dos outros. Por este seu jeito de conviver e de tratar com o povo, os discípulos não só falam sobre Deus, mas também o revelam; comunicam algo do que eles mesmos experimentam e vivem. Deus se faz presente nesta atitude de ternura e diálogo. O povo se dá conta de que o Deus dos discípulos é diferente do deus da Babilônia, diferente também da imagem clerical de Deus que eles ainda carregavam na memória, desde os tempos da monarquia, de antes da destruição do Templo, e que o projeto de Neemias e Esdras parecia querer impor outra vez. Assim, aos poucos, os olhos se abrem. O povo começa a perceber algo do novo que estava acontecendo. “Não estão vendo?”(Is 43,19)
É no período do cativeiro ou logo depois que se começa a insistir na observância do sábado (Is 56,2.4; 58,13-14; 66,23; cf Gen 2,2-3). Era para que o povo exilado tivesse ao menos um dia por semana para se encontrar, partilhar sua fé, louvar a Deus e, assim, refazer as forças e animar-se mutuamente. É nestas reuniões semanais que eles refrescam a memória (Is 43,26; 46,9), contam as histórias de Noé (Is 54,9-10), de Abraão e Sara (Is 51,1-2), da Criação (Is 45,18-19; 51,12-13), lembram o Êxodo (Is 43,16-17), apontam os fatos da política e perguntam: “Quem é que faz tudo isto?" (Is 41,2). Fazem reunião de noite, fora de casa, e perguntam: “Levantem os olhos para o céu e observem: Quem criou tudo isso?” (Is 40,26). A resposta é sempre a mesma: "É Javé, o Deus do povo, o nosso Deus!". Assim, aos poucos, a natureza deixa de ser o santuário dos falsos deuses; a história já não é mais decidida pelos opressores do povo; o mundo da política já não é mais o domínio de Nabucodonosor. Por trás de tudo começam a reaparecer os traços do rosto de Javé, o Deus do povo. A natureza, a história e a política deixam de ser estranhos e hostis ao povo e tornam-se aliados dos pobres na sua caminhada como Servo de Deus e “Luz das Nações” (Is 42,6; 49,6). Diante desta presença avassaladora de Deus no mundo, na vida, na história, na política, no próprio povo, os discípulos convocam o povo: "Cegos, olhem! Surdos, ouçam!" (Is 42,18). "Não estão vendo?" (Is 43,19).
Agora, já não é a perseguição que enfraquece a fé, mas sim a fé renovada e esclarecida que enfraquece o poder dos poderosos. A face de Deus reaparece na vida. O povo, animado por esta Boa Notícia, desperta (Is 51,9.17; 52,1), se põe de pé (Is 60,1), começa a cantar (Is 42,10; 49,13; 54,1; 61,10; 63,7) e a resistir (Is 48,20).

IV
O RUMO QUE A HISTÓRIA TOMOU
Depois do cativeiro, o grupo da maioria silenciosa diluiu-se no império. O da independência política ou do retorno ao passado desapareceu. Provavelmente, foi eliminado pelo império e pelo tempo. A experiência dos discípulos e discípulas de Isaías continuava viva, animando o povo, mas como força subterrânea, não chegou a ter um reconhecimento oficial das autoridades religiosas da época. O projeto do grupo de Neemias e Esdras tornou-se a proposta oficial, aparentemente a mais viável naquele contexto, pois muitos deles tinham adquirido bons empregos e posições vantajosas na nova pátria, como transparece nas entrelinhas de vários livros (Ne 2,1-9; Esd 7,11-26; Tb 1,12; Es 2,16; 6,10-11; Dn 3,97).
Assim, a partir da metade do século V, em 445 aC, Neemias, ministro de confiança do rei da Pérsia, usando da sua influência junto ao rei, conseguiu a licença para ir a Jerusalém a fim de reorganizar o povo ao redor do Templo e reconstruir as muralhas da cidade (Ne 2,4-9; 3,38). Terminada a tarefa, voltou para junto do Rei (Ne 13,6). Em 398, também com o apoio do rei, Esdras deu continuidade à obra de Neemias (Esd 5,1 a 6,22). Ele conseguiu o privilégio para o povo poder viver segundo a Lei de Deus sem atender às exigências da religião dos ídolos. O rei Artaxerxes chegou a dizer a Esdras: “Quem não obedecer à lei do seu Deus que é a lei do rei, será castigado rigorosamente com morte ou exílio, multa ou prisão” (Esd 7,26).
A proposta de Neemias e Esdras carregava no seu bojo uma contradição. De um lado, buscava abertura e barganha frente ao poder político e econômico. De outro lado, promovia o isolamento e a separação do povo de Deus frente às outras religiões e culturas. Desta ambigüidade inicial nasceram dois partidos que se tornaram inimigos irreconciliáveis, ambos lutando pela liderança, ambos irmãos, filhos da mesma contradição, ambos querendo Jerusalém como centro simbólico do movimento judaico internacional.
O grupo da abertura e barganha identificava a obediência a Deus com a obediência à lei do Rei. Eles conseguiram a liderança política e econômica e autoritariamente, sem nenhuma sensibilidade pela religiosidade do povo, impunham aos outros tudo que vinha do império, inclusive a cultura grega e as expressões do culto imperial: jogos olímpicos, ginásio, uniformes, associações, construção das cidades, comércio, dinheiro (2Mac 4,12-14; 1Mac 1,11-15). Eles deram origem aos saduceus e à elite sacerdotal.
O grupo do isolamento e da separação identificava a obediência a Deus com a observância da lei de Deus. Eles conseguiram a liderança religiosa e cultural e tinham grande influência sobre a consciência do povo. Eles deram origem aos fariseus e doutores da lei. Para defender o povo contra a agressão da elite econômica e política e ajudá-lo a manter sua identidade como povo eleito de Deus, eles se fechavam cada vez mais na estrita observância da lei de Deus e na pureza da raça, o que os levou a um total isolamento entre as nações. Até a reunião semanal no sábado foi por eles transformada em preceito obrigatório.
Paradoxalmente, este fechamento quase irracional em torno da lei de Deus evitou que o povo fosse desintegrado pela política desastrosa e opressora daquela elite estúpida que barganhava favores junto aos poderes públicos do império e agredia o povo com a imposição de costumes estrangeiros. O fechamento foi a única saída que sobrou para os pobres e foi assim que, depois de 400 anos, Jesus os encontrou nas aldeias da Galiléia. Mesmo formado no fundamentalismo autoritário, alienado e alienante dos fariseus, o povo pobre, diferentemente dos fariseus, continuava aberto para a mensagem de vida que Jesus que lhe revelava (Mt 11,25-27). A história se repete até hoje! Clericalismo pode até proteger em casos especiais, mas não traz vida. O povo aguarda a mensagem da vida que vem de Jesus.

V
A NOVA PROFECIA DEPOIS DO CATIVEIRO
Mesmo depois do cativeiro da Babilônia, a figura do profeta Elias continuou alimentando a esperança do povo, tão bem expressa na última frase do AT: “Eis que vos envio o profeta Elias, antes que venha o grande e terrível Dia do Senhor; ele converterá o coração dos pais aos filhos e o coração dos filhos a seus pais, para que eu não venha e fira a terra com maldição” (Ml 3,21-22; Eclo 48,10; Lc 1,17). O que pode evitar a maldição, i.é, a desintegração da convivência humana e o retorno do cativeiro, não é a restauração sem mais do passado como queriam Zorobabel e Josué, nem a barganha com o império e a imposição autoritária da lei como pretendiam Neemias e Esdras, mas sim a reconciliação de pais e filhos, i.é, a reconstrução da vida comunitária, nascida da fidelidade à Palavra de Deus, tal como propunham os discípulos de Isaías. 
De fato, ao longo dos quatro séculos, de 445 até o NT, em meio às contradições, avanços e recuos da história, a experiência profética dos discípulos e discípulas de Isaías, mesmo abafada pela ideologia oficial, continuava viva na alma do povo como fonte subterrânea de resistência. Vejamos algumas destas expressões da Nova Profecia
1. Qohelet: redefinir os valores da vida e reconstruir o tecido da convivência humana
O cativeiro desarticulou o quadro tradicional dos valores da vida. As soluções propostas por Zorobabel, Josué, Esdras e Neemias, em vez de reconstruir a convivência humana, contribuíam para miná-la ainda mais, tanto por parte da elite sacerdotal que promovia a abertura, como por parte dos escribas que se fechavam na observância da lei. Qohelet oferece critérios para o povo adquirir uma consciência mais clara frente às tendências da época e aos valores da vida. Com palavras diferentes, ele repete, do começo ao fim: “Tudo é vaidade!”, miragem, ilusão! Parece até um estribilho que sempre volta (Qo 1,2.14.17; 2,1.11.15.17.19.21.23.26; 3,19; 4,4.8.16; 5,9.15.19; 6,2.9.12; 7,6.15; 8,10.14; 9,9; 11,8.10; 12,8). Ele critica tanto a sede de riqueza da elite (Qo 2,1-16; 5,9-16) e a sua mania de correr atrás das novidades do império (Qo 1,10-11), quanto o fechamento dos escribas e a sua pretensa justiça (Qo 7,15-16). Por meio de um outro estribilho, repetido sete vezes ao longo das páginas do livro (Qo 2,24-25; 3,12-15; 3,22; 5,17-19; 7,13-14; 8,15; 9,7-10), Qohelet aponta uma outra saída, que pode ser resumida da seguinte maneira: “Nada há de melhor para o ser humano do que alegrar-se, comer e beber, desfrutar o fruto do trabalho e gozar a vida com a esposa amada, pois tudo isto vem da mão de Deus”. Qohelet convida o povo a reencontrar o fundamento da existência na vida em comunidade, na família, no trabalho honesto e na fé em Deus. Todo o resto, que não contribui para a reconstrução das relações primárias neste núcleo básico da convivência humana é vaidade, perda de tempo, corrida atrás do vento.
2. Jó: fazer uma crítica radical à teologia da retribuição
O livro de Jó ajuda a perceber como a imagem que temos de Deus repercute na organização econômica, social, política e religiosa da sociedade. Naquele tempo, o ensino oficial dizia e repetia: “Sofrimento e pobreza são castigo de Deus. Riqueza e bem-estar, sinais de recompensa divina!” Até hoje, este ainda é o fundamento da assim chamada Teologia da Retribuição. Esta maneira de representar o relacionamento entre Deus e o ser humano beneficiava a elite e dava aos pobres e sofredores um complexo de culpa e de inferioridade. O livro de Jó verbaliza a tensão que, na época, estava nascendo entre o ensino oficial da elite e a incipiente consciência rebelde dos sofredores. O livro de Jó é um teatro. Jó representa os sofredores, cuja consciência estava começando a se rebelar. Os três amigos representam a visão tradicional, que eles defendem com unhas e dentes. A cabeça de Jó, isto é, a cabeça dos sofredores, formada pelo catecismo da tradição dominante, dizia: “Você sofre e é pobre porque você é pecador! Deus está te castigando!” Mas o coração, a consciência, lhes dizia: “Deus é injusto comigo! Não pequei! Quero brigar com Ele para me defender”. Jó acusa Deus e critica os três amigos, que identificavam a presença de Deus com o nível econômico das pessoas: “Vocês usam mentiras e injustiças para defender a Deus!” (Jó 13,7). “Vocês são capazes de sortear um órfão e vender seu próprio amigo!” (Jó 7,27). A frase final é uma chave para todo o livro e para todos os tempos. Jó se dirige a Deus e diz: “Eu te conhecia só de ouvir falar de Ti , mas agora meus olhas te viram. Por isso me retrato e me arrependo sobre pó e cinza” (Jó 42,4-6). Jó teve uma nova experiência de Deus e descobriu que, no fundo, a sua luta não era contra Deus, mas sim contra aquela imagem de Deus que falsificava a consciência das pessoas e destruía a convivência. Qual a imagem de Deus que a igreja comunicou ao povo ao longo dos séculos e que agora está sendo questionado pelo Jó de hoje?
3. Cântico: resistir contra a marginalização e a exclusão da mulher
No relato sobre a manifestação da Sabedoria Divina na história do povo de Deus (Eclo 44-50), o autor do livro do Eclesiástico esqueceu as mulheres. Só conservou os nomes dos homens. Quando ele fala da mulher, manifesta um certo desprezo (Eclo 25,13); e quando diz coisas boas sobre ela, é só a partir do ponto de vista do homem (Eclo 26,1-2.13; 36, 21-27). Porém, quando fala da Sabedoria Divina, ele a personifica e a elogia sob a figura de uma mulher (Eclo 4,11-19; 14,20-15,10; 24,1-29). Estas duas tendências, marginalização e valorização da mulher, aparecem em todo o Antigo Testamento, mas sobretudo no período depois do cativeiro. Na medida em que crescia a exclusão da mulher, cresciam também a sua resistência e valorização. Vários livros registram esta voz da oposição. No Cântico dos Cânticos, a mulher aparece como pessoa independente que, para poder encontrar o seu amado, enfrenta os guardas da cidade (Ct 3,1-4; 5,2-8), o rival que a persegue (Ct 8,11-12), e os irmãos que querem protegê-la (Ct 8,8-10). No livro de Rute, duas mulheres pobres, ambas viúvas sem futuro, das quais uma estrangeira, estão na origem da reconstrução do povo. São elas que tomam as iniciativas para reconquistar os direitos perdidos e para fazer observar a lei do resgate. É de uma estrangeira que nasce o avô do messias. Judite, mulher de um povoado imaginário da Samaria, contesta a decisão tomada pelos anciãos e sacerdotes. Sozinha, ela enfrenta o exército inimigo e consegue derrotar o general Holofernes, cortando-lhe a cabeça. Ester é a mulher que se engaja na luta pela sobrevivência do povo. O mesmo valor de resistência encontramos nas primeiras páginas da Bíblia, escritas depois do cativeiro, onde se afirma a igualdade do homem e da mulher como imagem de Deus  (Gn 1,27). Nestes livros a mulher aparece não em primeiro lugar como mãe e esposa, mas muito mais como mulher que sabe usar sua dignidade, beleza e feminilidade para lutar pelos direitos dos pobres e assim defender a Aliança do povo. E ela luta não a favor do Templo, nem a favor de leis abstratas, mas sim a favor da vida do povo.
Assim, sempre de novo, de maneira variada, a Nova Profecia levantava a cabeça e manifestava a sua presença nas novelas populares (Rute, Ester, Judite, Jonas), na literatura sapiencial (Jó, Cântico dos Cânticos, Eclesiastes e trechos de Provérbios, Eclesiástico e Sabedoria), nas celebrações e romarias (muitos Salmos), no movimento apocalíptico (Daniel). Ela reaparece confirmada e realizada em e por Jesus que, como os discípulos e discípulas de Isaías, se apresenta como servidor de Deus e do povo.

VI
A NOVA PROFECIA,
REALIZADA EM JESUS E POR JESUS
A nova experiência de Deus
A experiência de Deus como Pai é a raiz da consciência que Jesus tinha de si mesmo, da sua missão e do anúncio que fazia do Reino. Jesus chegou a identificar-se em tudo com a vontade de Deus: “Eu a cada momento faço o que o Pai me manda fazer” (Jo 12,50). “O meu alimento á fazer a vontade do Pai” (Jo 4,34). Por isso, ele é a revelação do Pai: “Quem vê a mim vê o Pai!” (Jo 14,9). Não foi fácil. Ele teve momentos difíceis, em que gritou: “Afasta de mim este cálice!” (Mc 14,36). Mas venceu por meio da oração (Lc 22,41-44). Como diz a carta aos Hebreus: “Com clamor e lágrimas dirigiu preces àquele que podia salvá-lo da morte!’ (Hb 4,7). Teve que aprender o que vem a ser obediência (Hb 4,8). Por isso tornou-se para nós revelação e manifestação de Deus. A obediência de Jesus não é disciplinar, mas profética, reveladora do Pai. Ela deu a ele olhos novos para perceber a presença do Reino no meio do povo. O Reino já estava aí, mas ninguém o percebia (Lc 17,20-21). Como os discípulos de Isaías, Jesus o percebeu e o revelou (Mt 16,1-3). Ele via o tempo maduro, o campo branco para a colheita (Jo 4,35; cf. Is 40,9; 52,7-8; 62,11) 
Pelo seu jeito de ser e de ensinar, Jesus despertava no povo a força adormecida do Reino que o próprio povo não conhecia ou tinha esquecido. Jesus desobstruiu o acesso à fonte dentro das pessoas, e a água começou a jorrar (Jo 4,14). Assim, muitas pessoas, através da fé em Jesus, despertaram para uma vida nova. Enquanto em Nazaré, por causa da incredulidade, nada feito! (Mc 6,5-6) A Boa Nova do Reino era como um fertilizante que fazia a semente da vida crescer. O Reino que estava escondido apareceu e o povo se alegrou.
O novo jeito de trabalhar com o povo
Como os discípulos de Isaías, Jesus entendia sua missão como um serviço: “Não vim para ser servido mas para servir” (Mc 10,45). Para apresentar seu programa ao povo usou uma frase do Servo de Deus, anunciado por Isaías (Lc 4,17-18; Is 61,1-2). Tanto no batismo como na transfiguração, a voz do Pai o confirmou na missão evocando o mesmo Servo de Deus (Mc 1,11; 9,7; Is 42,1). E os evangelistas, quando descrevem a paixão e a morte, usam frases que evocam a paixão e morte do Servo em Isaías (Is 52,1-9). 
Como os discípulos de Isaías, Jesus não só falava sobre Deus, mas também o revelava. Comunicava algo do que ele mesmo experimentava e vivia. O que mais chama a atenção é a bondade com que Jesus acolhia o povo (Mc 6,34; 8,2; 10,14; Mt 11,28-29). Deus se fazia presente nesta atitude de ternura acolhedora. Jesus valorizava as pessoas e as estimulava a se firmar e ter confiança em si. Elogiou o escriba quando este chegou a entender que o amor a Deus e ao próximo eram o centro da Lei de Deus, e lhe disse: “Você não está longe do reino!” (Mc 12, 34). Animou a Jairo (Mc 5,36), confirmou a mulher do fluxo de sangue (Mc 5,34), encorajou o cego Bartimeu (Mc 10,49-52) e o pai do menino epilético (Mc 9,23-24), revelou o valor da ação aparentemente nula da viúva (Mc 12,41-44). A sua atitude livre e libertadora contaminava os discípulos e levava-os a transgredirem normas caducas: eles colhiam espigas, quando estavam com fome, mesmo em dia de sábado (Mt 12,1); não lavavam as mãos antes de comer (Mc 7,5); entravam nas casas dos pecadores e comiam com eles (Mc 2,15-17): não faziam jejum como era costume entre os judeus (Mc 2,18).
Como os discípulos de Isaías, Jesus tinha um jeito próprio de ensinar. Ele não era do clero. Era leigo. Não tinha estudado na escola dos doutores em Jerusalém. Só uma vez tinha estado com eles, aos doze anos, por ocasião da romaria (Lc 2,46). Jesus não absolutizava seu próprio pensamento. Ele sabia escutar o apelo do Pai nas reações das pessoas. Assim, a reação da mulher Cananéia ajudou-o a descobrir que devia abrir sua missão para os pagãos (Mt 15,21-28). Jesus não impunha suas idéias autoritariamente, mas através de parábolas provocava a participação do povo. O povo percebia a diferença e dizia: “Ele ensina como quem tem autoridade e não como os escribas e os fariseus” (Mc 1,22.27). Parece até uma ironia! Os escribas, quando ensinavam, repetiam sentenças das autoridades, mas para o povo não tinham autoridade. Jesus, que nunca citou autoridade alguma, falava com autoridade! O clero da época só tinha poder, não tinha autoridade!
Reconstruir a comunidade, imagem do rosto de Deus
O ponto em que Jesus mais insiste é a reconstrução da vida comunitária. O objetivo do anúncio do Reino é refazer o tecido das relações humanas, reconstruir a comunidade, imagem do rosto de Deus. Todo o resto, as leis, as normas, as imagens, o catecismo, tudo deve estar a serviço deste valor central, expressão da igualdade dos dois amores: a Deus e ao próximo. Este é o sentido do Sermão da Montanha (Mt 5,17-48). Pois, se Deus é pai, somos todos irmãos e irmãs. A Comunidade deve ser a revelação do rosto acolhedor e amoroso de Deus, transformado em Boa Nova para o povo, sobretudo para os pobres.
No tempo de Jesus havia vários movimentos que procuravam uma nova maneira de viver e conviver: essênios, fariseus e, mais tarde, os zelotes. Muitos deles formavam comunidades de discípulos e tinham seus missionários (Mt 23,15). Quando iam em missão, iam prevenidos. Levavam sacola e dinheiro para cuidar da sua própria comida, pois não podiam confiar na comida do povo que nem sempre era ritualmente “pura”. As normas da pureza dificultavam a acolhida, a partilha, a comunhão de mesa e a hospitalidade, as quatro pilares da vida comunitária da época.
Ao contrário dos outros missionários, os discípulos e as discípulas de Jesus não podem levar nada, nem bolsa, nem sacola, nem ouro nem prata, nem cobre, nem dinheiro, nem bastão, nem cajado, nem sandálias, nem sequer duas túnicas (Mt 10,9-10; Mc 6,8; Lc 10,4). A única coisa que podem levar é a paz (Lc 10,5). O missionário vai sem nada, porque deve acreditar que vai ser recebido. Sua atitude provoca no povo o gesto evangélico da hospitalidade (Lc 9,4; 10,5-6). Eles devem ficar hospedados na primeira casa em que forem acolhidos. Não podem andar de casa em casa, mas devem conviver de maneira estável e, em troca, recebem sustento, “pois o operário merece o seu salário” (Lc 10,7). Ou seja, devem integrar-se na vida e no trabalho da comunidade local, no clã, e confiar na partilha. Não podem levar sua própria comida, mas devem comer o que o povo lhes oferece (Lc 10,8). Isto é, devem aceitar a comunhão de mesa, e não podem ter medo de perder a pureza no contato com o povo. A convivência fraterna é um valor evangélico que prevalece sobre a observância das normas rituais. Como tarefa especial devem praticar a acolhida e cuidar dos excluídos: doentes, possessos, leprosos (Lc 10,9; Mt 10,8). Isto é, devem exercer a função do Go´êl : acolher os excluídos para dentro da comunidade e refazer a vida comunitária do clã.
Caso todas estas exigências forem preenchidas, poderão gritar aos quatro ventos: “O Reino chegou!” (cf. Lc 10,1-12; 9,1-6; Mc 6,7-13; Mt 10,6-16). Pois o Reino não é uma doutrina, mas sim uma nova maneira de viver e conviver, nascida da Boa Nova que Jesus nos trouxe de que Deus é Pai e todos somos irmãos e irmãs uns dos outros. Devem recriar e reforçar a comunidade local, o clã, a “casa”, para que possa ser novamente uma expressão da Aliança, do Reino, do amor de Deus como Pai que faz de todos irmãos e irmãs. 
Fonte de resistência
A simpatia do povo por Jesus ia crescendo a ponto de provocar medo nos líderes (Mc 11,18. 32; 12,12; 14,2). O povo, antes tão submisso, crescia em consciência, escapava do controle da “grande disciplina” e criava dentro de si maior consciência e liberdade frente ao poder religioso que o oprimia. Graças à Boa Nova de Jesus, o povo começava a ser ele mesmo! A Boa Nova fez surgir uma nova divisão. Não a divisão causada por crenças e ritos, mas sim a divisão que tinha a ver com a prática da justiça e da verdade. Incomodados, os líderes se organizaram para eliminar o perigo e começaram a perseguir Jesus. Como o Servo de Isaías, Jesus, não voltou atrás, não recuou. Continuou fiel ao Pai e ao povo marginalizado.
Eis o auto-retrato de Jesus: 
4. O Senhor me concedeu o dom de falar como seu discípulo,
     para eu saber dizer uma palavra de conforto a quem está desanimado.
     Cada manhã, ele me desperta, para que eu o escute,
     de ouvidos abertos, como o fazem os discípulos.
5. O Senhor me abriu os ouvidos e eu não resisti, nem voltei atrás.
6. Oferecei minhas costas aos que me batiam
     e o queixo aos que me arrancavam a barba.
     Não escondi o rosto para evitar insultos e escarros.
7. O Senhor é a minha ajuda! Por isso, estas ofensas não me desmoralizam.
     Faço cara dura como pedra, sabendo que não vou ser um fracassado.
8. Perto de mim está quem me faz justiça.
Quem tem coragem de depor conta mim?
     Vamos comparecer juntos no tribunal!
Quem tem algo contra mim? Que se apresente e faça a denúncia!
9. O Senhor é a minha ajuda! Quem tem coragem de condenar-me?
     Todos eles vão cair aos pedaços, como roupa velha comida pela traça! (Isaías 50,4-9)
Eles chegaram a matar Jesus. Diz o quarto Cântico do Servo:
8. Sem defesa e sem julgamento, foi levado embora. Não havia ninguém para defendê-lo.
     Sim, ele foi arrancado do mundo dos vivos, foi ferido por causa dos crimes do seu povo.
9. Foi enterrado junto com os criminosos, recebeu sepultura entre os malfeitores,
     ele que nunca cometeu crime algum e que nunca disse uma só mentira! (Is 53,8-9)
E o cântico continua com esta prece:
10. Oh! Senhor, que o teu Servo, quebrado pelo sofrimento, possa agradar-te!
      Aceita a sua vida como sacrifício de expiação!
      Que ele possa ver os seus descendentes, ter longa vida,
      e que o Teu Projeto se realize por meio dele!” (Is 53,10)
Deus atendeu à prece e ressuscitou Jesus, confirmando assim o testemunho profético que ele tinha dado do Reino. 
Resumindo: Tudo isto era e continua sendo a Nova Profecia! Refazer o tecido das relações humanas Reconstruir a comunidade, imagem do rosto de Deus, do Deus que nos foi revelado e anunciado por Jesus de Nazaré. Algo novo já está nascendo no meio do povo, algo da vida, algo de Deus.  “Não estão vendo?” (Is 43,19).

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